terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O Poder da Música / Folha do Sul - 19.Janeiro.2015



O Poder da Música

São Raimundo Nonato, Piauí, é uma cidade de vinte mil e poucos mais habitantes no meio do sertão nordestino e onde tive o privilégio de morar por três anos. Famosa pelo Parque Nacional da Serra da Capivara, com suas pinturas de homens pré históricos, a famosa pedra furada e sua vegetação exuberante no meio de um sertão tão castigado pela seca. Seus moradores são pessoas muito legais e de uma hospitalidade que certamente rivaliza com a nossa aqui no Pampa. Eu acho que Bagé e São Raimundo Nonato poderiam ser consideradas até cidades irmãs por causa de várias similaridades, a mais importante o valor e determinação dos seus moradores.
Um dos seus habitantes, já falecido, foi o Senhor Carlos Alberto de Santana, mais conhecido pelos locais como Bibiu. Nascido em uma localidade próxima, foi criado por estranhos, conheceu apenas o pai pois sua mãe morreu cedo. Sua vida foi marcada pela pobreza, muitas vezes extrema e pela obesidade mórbida, que o acompanhou até o fim. Mas Bibiu tinha um dom que é reservado para poucos: ele tinha o espírito da música no seu sangue. Atraia uma multidão de gente, muitos deles jovens e crianças, a tarde na praça do mercado, perto da rodoviária para fazerem um verdadeiro concerto. Bibiu nunca teve educação formal maior, o seu dom veio mesmo de Deus. Seus problemas de saúde e pobreza eram amenizados pelos vizinhos, que sempre lhe ajudaram como puderam. Seu sonhos incluíam coisas simples como ter um som novo, uma roupa nova. Vê-lo na praça tocando com o pessoal era uma experiência com muita emoção e se podia ver que aquilo era parte dele, nascido músico, sem diploma, sem formação, seria músico até a morte. Seu momento especial foi ter tocado em um concerto junto com outros membros da comunidade musical de São Raimundo.
Quando penso no Bibiu, me lembra o Israel Kamakawiwo'ole, um músico do Hawai, que ficou particularmente famoso pela sua versão de “Somewhere over the Rainbow” (https://www.youtube.com/watch?v=V1bFr2SWP1I), mas não apenas. Também obeso como o Bibiu, também falecido devido a isto, o Senhor Israel conseguiu fama, mas como o Bibiu, o que ele mais fez de importante foi trazer alegria para o coração das pessoas.
Existe um ditado que “todo mundo morre, mas nem todo mundo vive”. Certamente o Bibiu e o Israel tiveram uma existência que tem seus aspectos de riqueza por tudo que puderam ofertar para os outros. Mas enquanto o dom do Israel pode ser aproveitado, o do Bibiu ficou perdido lá no meio do sertão, restando apenas como uma lembrança daqueles que o conheceram.
Será que a maior perda é do Bibiu? Por melhores que sejam as minhas palavras, nada poderá descreve-lo tocando ou cantando, nem o que ele poderia ter alcançado se este seu dom tivesse sido mais bem explorado. No entanto, o Senhor Israel é conhecido mundo afora pelos seus vídeos e pela muito bem feita divulgação do seu nome. Quem perde? Pode-se dizer, com muito cuidado, que a maior perda é da sociedade, que poderia ter aproveitado bem melhor um cidadão como o Bibiu. Seria mais riqueza, pois a música não deixa de ser um bem coletivo, pois parte de nós é como seres culturais. Certamente também o Bibiu seria beneficiado pois iria receber bastante pelo seu trabalho. Fica ai mais uma possibilidade não ocorrida.
Este meu texto é uma homenagem ao curso de música da UNIPAMPA (e do IMBA também), pois vejo a dedicação e atenção que é dada por professores e alunos. Talentos locais estão aparecendo ou se desenvolvendo ali. Certamente surpresas tem sua chance de aparecer, surpresas boas, e os “Bibius”, que certamente estão por ai esperando uma oportunidade, sempre poderão ali encontrar um porto seguro, um farol de luz, um guia, para que despontem, que floresçam com todo o seu esplendor. Parabéns em particular aos professores do curso de música pelo tanto que tem feito em tão pouco tempo na comunidade.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Onde fica a fronteira? / Folha do Sul - 12.Janeiro.2015



Onde fica a fronteira?

O atentado em Paris e suas repercussões estão sendo o grande centro das atenções no mundo todo. No meio de muita comoção se faz necessário isolar cada detalhe e tentar uma reflexão sobre o que realmente está acontecendo.
O atentado, ato terrorista, crime, etc, dê o nome que quiser para o que aconteceu, foi na realidade o assassinato de 12 pessoas (mais onze feridos) que trabalhavam em uma revista satírica em que eram publicadas charges que entre outros temas satirizavam símbolos religiosos. Seguiu-se uma perseguição policial em que ocorreram sequestros e mais mortes, incluindo dos supostos terroristas. Em todo o mundo tivemos manifestações contra o atentado e algumas de apoio ao mesmo, ou pelo menos condenando o que chamaram de “brutalidade policial”. No meio de tanta informação, estas partes foram possíveis de extrair sem correr o risco de exageros.
Os assassinatos em si, com toda a brutalidade que os cercam, não deixam de ser um fato corriqueiro em um mundo no qual já nos acostumamos a escutar no noticiário dezenas, centenas de pessoas serem mortas todos os dias em conflitos que parecem não ter fim. Se alguém duvida do que digo, basta abrir as páginas policiais de qualquer jornal brasileiro. Temos uma situação séria mesmo no nosso próprio pais. Então, por mais importantes que fossem os jornalistas, não é este o fato central aqui.
A atitude da policia francesa de buscar os perpetradores é a atitude que se espera desta instituição. A policia é paga exatamente para isso e um estado por ser democrático, não significa que tem que ser fraco. Até prova em contrario, a policia agiu dentro do que se esperava da mesma. Pessoas que cometem delitos, seja de que ordem forem, inclusive os de natureza política, devem estar preparadas para as consequências. Novamente não é este o foco e podemos deixar de lado a atitude policial.
A atitude dos sujeitos que cometeram o atentado foi por causa da satirização de símbolos religiosos. Qual o símbolo e qual religião? Será este o ponto? Ou será que deveríamos ver até que ponto se pode transgredir da liberdade de expressão e até que ponto, e como, pode-se ter uma reação contra estas transgressões. Mas ai entramos em uma zona cinzenta, não delimitada. Temos tido a atitude de permitir uma total liberdade de expressão, pelo menos nos países democráticos, com a salvaguarda dos direitos individuais e das instituições. Em outras palavras, todo mundo é livre para se manifestar, mas se houver abusos, como difamação e calúnia, a Justiça poderá ser acionada. No caso de símbolos religiosos, isto se torna terreno cheio de armadilhas.
A atitude de extremistas também não ajuda em nada, servindo apenas para radicalizar um debate que deveria ser muito mais sadio. Por vezes, lendo os comentários internet a fora, parece que estamos voltando ao tempo das cruzadas, em que a cristandade se chocou contra o mundo islâmico. Todo o desenvolvimento ao longo do Renascimento, Iluminismo, etc parece ter sido jogado na lata do lixo pelo teor destes comentários.
Estamos portanto em terreno desconhecido. Isto não é de agora. Qual o limite para a liberdade de expressão? Será possível termos tal limite? Quem iria marcar esta fronteira? O estado laico, a Igreja, alguma ONG? A resposta a isso tem sido, desde as Revoluções Americana e Francesa, mais de duzentos anos atrás, a ausência de toda e qualquer censura. Dentro desta filosofia, qualquer restrição à liberdade de imprensa, por menor que seja, é interpretada como um atentado às liberdades democráticas de livre pensamento e crítica.
O atentado em Paris nos atinge em cheio nestas liberdades. Pior, ao invés de termos um debate sadio sobre este tema, acabamos perdendo o foco. Poderíamos dizer que sem o debate, terminamos jogando fora a água do banho junto com o bebê.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Energia e Democracia / Folha do Sul - 5.Janeiro.2015



Energia e Democracia

Nosso pais está contaminado. Uma doença contagiosa que se alastra por várias outras nações. Os especialistas no assunto a denominam “Maldição do Petróleo”. É basicamente quando o poder em um pais produtor de petróleo é tomado de assalto por um determinado grupo que usa de todos os meios para se manter lá. As benesses do monopólio do “óleo da terra” são usufruídas por este grupo que joga migalhas para o povo, esmagando de todas as formas toda e qualquer oposição. Qualquer atitude ou intervenção vale, legal ou não, contanto que o dinheiro no pipeline petrolífero continue fluindo. Exemplos bem tipificados disto são Venezuela, Nigéria e Líbia. Apesar de toda a riqueza que o petróleo traz, ela acaba concentrada na mão de poucos. Se alguém tem dúvidas sobre isso, basta se debruçar na situação atual da nossa vizinha Venezuela, imersa em problemas.
Felizmente, Deus é brasileiro (para contrabalançar, temos um papa argentino!) e não nos foi dada a facilidade de se extrair o petróleo como em outros países. Nosso óleo, apesar de abundante, é de difícil extração, e caro, realmente caro. A diferença entre o custo de extração do óleo na Arábia Saudita e no pré-sal é de 10 ou 20 vezes. Por “conspiração”, falta de organização, ou burrice mesmo, não se têm estes dados com exatidão. Mas mesmo com os dados divulgados, com certeza este nosso petróleo é bem caro, falando-se em um custo de extração em alguns campos de até 70 dólares americanos por barril (um barril equivale a 159 litros). Com o preço em queda, tendendo a menos de US$ 60 por barril, fica difícil, fora razões estratégicas, justificar o uso deste petróleo verde-amarelo mais caro. Estamos doentes com a tal “maldição”, mas no nosso caso, a doença é leve, e provavelmente depois da “cura”, teremos anticorpos contra uma nova contaminação. A ação dos entes judiciais públicos contra a corrupção na nossa estatal petrolífera é mais que bem vinda pela imensa maioria da sociedade. Petróleo significa riqueza, mas também apresenta lamentáveis vícios socioeconômicos de origem. Em outras palavras, na realidade do dia a dia, o discurso é outro.
Mas algo novo está no ar. Novas fontes de energia estão disputando palmo a palmo o terreno com o negro petróleo. Energias eólica, hidrelétrica, geotérmica, etc. estão, a cada dia, mais baratas e eficientes. Estas fontes de energia não são monopólio deste ou daquele grupo. Muito embora provavelmente podemos esperar para em breve serem criados grupos de trabalho conspirando em Brasília para criarmos uma “Ventobrás” estatal para deixarmos o monopólio dos ventos brasileiros com o governo. As criancinhas que forem ao parque de diversão precisarão primeiro ver se isto já não virou em lei pois ao usarem seus cata ventinhos de brinquedo estarão quebrando o monopólio e portanto serão passiveis de cadeia e processo criminal. Apesar da brincadeira, com o histórico de nossos gestores em Brasília, podemos esperar de tudo.
A grande vantagem destas novas fontes, cada dia mais eficientes, eu repito, é que dificilmente se poderá justificar uma “Ventobrás”. Mesmo o setor elétrico é, a cada dia, mais tendencioso para desregulamentação e investimentos privados. A administração de um negócio de características privadas e descentralizadas pelo governo cria distorções imensas difíceis de serem administradas. O resultado acaba sendo corrupção ou tendência à mesma. Nossos problemas com empresas estatais, Petrobrás a frente, têm portanto raízes estruturais profundas que só podem ser eliminadas com uma mudança estrutural profunda incluindo se ai desregulamentação. A questão que fica é se a sociedade brasileira está pronta a aceitar isto. As mudanças no setor telefônico, apesar de parciais e limitadas, mostraram a força disto. A democracia se consolidou com a democratização dos telefones, que apesar de ainda serem caros, tanto em nível do padrão econômico da população como em comparação com outros países, permitindo que a população como um todo pudesse finalmente usufruir deste meio de comunicação moderno. Democracia, tanto política como econômica, é exercida com desregulamentação, descentralização, ética e respeito à lei. É por isso que as energias renováveis, mais do que bem vindas, poderão ser a base de uma sociedade muito melhor e infinitamente mais democrática.

Armadilhas Urbanas / Folha do Sul - 22.Dezembro.2014



Armadilhas Urbanas

Bloco quatro da Universidade Federal do Pampa em Bagé. É onde fica, entre outras coisas, o Curso de Música. Duas moças são presenças quase diárias neste bloco, na verdade mãe e filha, a senhora Semira de Fátima Serpa e a senhorita Rosane Serpa Fraga. Rosane é, na verdade, aluna do Curso de Música, e eu diria que tremendamente esforçada, pois todos os dias as duas vem de Hulha Negra para as aulas da Rosane. A presença da mãe da Rosane, Dona Semira, é necessária, devido ao fato de Rosane é deficiente visual total.
O fato de ter nascido sem o dom da visão não impede que Rosane tenha seus sonhos, que se esforce para alcança-los. Na verdade muitas pessoas cegas acabam se tornando grandes músicos provavelmente porque a audição se aguça para compensar a falta da visão. Fico admirado em ver a perseverança e esforço da Rosane e o Amor e dedicação da Dona Semira. Amor de mãe não se discute, mas Dona Semira é como um anjo para a Rosane, que assim tem a possibilidade de conseguir concretizar seu sonho. Outras pessoas com deficiência visual (e outros tipos de limitação física) estão presentes no dia a dia da UNIPAMPA. Podemos vê-las no corredor e é importante o apoio que é dado para que elas possam se realizar como pessoas e cidadãos.
Mas será realmente necessária a presença de um “cuidador” como a Dona Semira? Lamentavelmente quando vemos a presença de buracos, pontas de ferro, e outros arranjos ao longo das calçadas da cidade, ficamos a nos perguntar qual o sentimento de civilidade cristã que temos com estas pessoas? Mesmo para as pessoas ditas “normais” muitas vezes é complicado até mesmo atravessar uma rua. Quero deixar bem claro aqui que normalidade também é uma coisa muito relativa, pois no final todos nós podemos ser atingidos, num descuido qualquer, por um objeto a espreita no passeio ou no meio fio.
Existem pontas de ferro brotando em várias calçadas. Buracos aparecem a todo instante. Rosane me contou que já teve amigos, também deficientes visuais, engolidos por bocas de lobo. As faixas de travessia deveriam ter uma camada de asfalto pelo menos ali para permitir aos cadeirantes uma travessia mais segura. Alias nos sinais de trânsito, um apito indicador para os deficientes visuais seria de bom tamanho. Imagino que quem poderia dizer melhor sobre estas necessidades seriam os próprios deficientes.
Estas pessoas são tão humanas como eu e você. A presença destas armadilhas nos passeios fere a sensibilidade de qualquer um e se tornam verdadeiras armas prontas a atingir estas mesmas pessoas que o sistema deveria proteger e não permitir que elas possam ser atingidas na sua integridade física por simplesmente exercerem seu direito de sair na rua.
Uma sociedade humana deve primar por ter sensibilidade com aqueles que tem algum tipo de limitação física. Nosso grau como civilização é medido em grande parte por ai. Deixo a esperança que este artigo toque a sensibilidade de algum centro de decisão na nossa cidade e que alguma providência seja tomada para melhorar a qualidade de vida destas pessoas.