segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Quebra de Paradigma / Folha do Sul - 24.Fevereiro.2014



Quebra de Paradigma

Uma das estórias que escutei quando criança é sobre comer manga com leite. Uma morte certa viria para aqueles que se aventurassem a ter tal ousadia. O Inferno seria o destino certo depois do fim infame. Até onde se sabe ninguém morreu de tal prática e portanto também ninguém teve que ir pagar seus pecados, incluindo a ingestão da tal mistura manga-leite.
Mas de onde saiu esta estória, quase que uma tradição de um Brasil que vai dando lugar a um novo? Alguém certamente começou a falar isso anos, séculos atrás. Uma pessoa passou para outra, com o tempo foi aumentando cada vez mais a fama maléfica da tal mistura manga-leite e por fim, voilà, temos “o mais potente veneno desde a descoberta do arsênico”, pelo menos no imaginário popular. Obviamente que não podemos descartar a possibilidade de isto ser verdadeiro. Quantas estórias populares no final acabaram sendo comprovadas pela ciência? Mas ai reside o problema e a solução: temos que ter comprovação de fatos e não boatos! Apenas precisamos deixar bem claro que mesmo boatos merecem investigação e comprovação.
Esta estória tem muito a ver com a transição silenciosa que vemos acontecer no nosso Pampa. A tradição aparentemente, por razões históricas, sempre foi de que a região era perfeita para criação de gado, e criação extensiva. Muito embora tenhamos um clima mediterrâneo perfeito, de fazer inveja a qualquer italiano ou grego, terras planas, etc. Tudo perfeito para a agricultura e pecuária que foram a base de sustentação de grandes civilizações no velho mundo. Obviamente que pecuária também, assim como todas as outras culturas, incluindo fruticultura, olivocultura, etc.
As barreiras, as resistências podem existir, mas a pior de todas são aquelas que estão dentro de nós mesmos. Se repetirmos que algo não irá funcionar, ai mesmo que este algo não terá futuro. Fico a imaginar a resistência que o plantio de arroz enfrentou no inicio. Hoje é algo mais que consolidado. Desnecessário citar as experiências da uva para vinho, oliveiras, etc, e mais recentemente, a soja.
O ponto central que quero levantar aqui não é o sucesso destas novas culturas que estão cada vez mais se tornando “tradicionais”. A grande questão é quais são as oportunidades que poderiam estar sendo aproveitadas agora!? Existem estórias que correm de sucesso de cultivo em pequena escala de uvas de mesa, de maçãs, de laranjas, etc. Poder-se-ia lançar inclusive ideias alternativas, tais como flores ornamentais. Flores são uma das maiores rendas de exportação do Oriente Médio para a Europa (excluindo o petróleo) assim como laranjas. Climas iguais!!
A questão que portanto fica é quanta renda poderia ser gerada em alternativa a criação de gado de corte extensiva? Isso incluindo a criação intensiva de gado leiteiro e mesmo de corte. O aproveitamento cada vez melhor dos recursos naturais, incluindo ai terra e água, é algo fundamental para dentro da orgulhosa cultura da região da Campanha podermos alçar voos cada vez maiores.
Como incentivo para aqueles que podem ficar a refletir sobre estas breves linhas, quero lembrar sobre a diferença de preços de uvas de mesa que temos entre o Pampa e a Serra Gaúcha: o preço de um quilo aqui é o mesmo de uma caixa inteira na Serra. Mesmo a nível local, temos um incentivo de preços que deveriam servir de alavancador destas novas oportunidades lembrando que pioneiros pagam um preço, é verdade, mas também são eles que também colhem os melhores resultados e lucros no final. Renda maior significaria também mais empregos e mais impostos.
Uma diversificação maior da agropecuária local também teria o efeito positivo e benéfico de poder trazer novas indústrias para a região. Alguma dúvida? Basta um passeio por Candiota e uma olhada, mesmo da estrada, nas empresas produtoras de vinho locais.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A mesma praça / Folha do Sul - 17.Fevereiro.2014



A mesma praça

Diz a lenda (de origem grega) que quando Pandora abriu a caixa secreta dos deuses para ver o que causava tantos ruídos dentro da caixa, dela saíram todos os males para afligir a humanidade. Ao perceber o seu erro, ela teria fechado a caixa. Um ruído ainda havia na caixa. Com muita desconfiança ela abriu a caixa e ai saiu a Esperança. A Esperança seria assim o espírito que iria nos consolar no meio das tormentas da vida. O filósofo alemão Nietzsche certa vez escreveu que a Esperança seria na verdade o último dos males da Caixa de Pandora.
Nos dias atuais, andar na nossa cidade está começando a se tornar, tal como os males da Caixa de Pandora, uma tortura a nos atormentar. O capim está tomando conta das praças e das ruas, sinais luminosos estão quebrados já por semanas e a quantidade de lixo largado nas ruas aumenta a cada dia. A situação está tão ruim que existe tanto mato nos canteiros centrais que acaba se tornando uma aventura atravessar uma rua. Acidentes nos cruzamentos da cidade onde os sinais luminosos deveriam estar funcionando se tornaram parte do dia a dia. Cuidado é necessário ao andar nas calçadas para não se escorregar em alguma casca de banana a espreita.
Obviamente a administração de uma cidade do tamanho de Bagé é algo complexo e se torna necessário um desconto para entendermos as limitações da administração, leia-se Prefeitura Municipal. Mas as pessoas nos cargos da administração são também membros da comunidade e assim como qualquer cidadão, também eles terão que atravessar ruas, passar em cruzamentos ou simplesmente andar nas calçadas.
Não basta o anuncio de que será feita uma licitação. Anúncios funcionam da mesma maneira que a Esperança nietzschiana da Caixa de Pandora: ficamos a esperar por algo que “acontecerá”. Acontecerá? Quando?
Escrevo estas linhas com a preocupação das aulas que começam agora. Particularmente os canteiros no meio das ruas se tornaram um perigo tremendo pela falta de visão ao se atravessar as mesmas. Surpreendente é não termos tido nenhuma tragédia maior (que seja conhecida) mas como na Lei de Murphy as chances de tal acontecer a partir de agora será infinitamente maior com milhares de jovens indo e voltando da escola todo dia. A Lei de Murphy é aquela que diz que a probabilidade de uma torrada cair com a parte da manteiga para baixo é proporcional ao valor do tapete.
Ruas minimamente limpas e sem mato, sinais luminosos funcionando, enfim que andar na nossa querida Rainha da Fronteira não seja uma aventura digna de Tarzan é o que esperamos todos nós que seja feito pela administração municipal.
Também não menos importante são as nossas praças. Motivo de orgulho de todos nós, moradores de Bagé, não podem ser deixadas de lado sem o devido cuidado. Tomar um chimarrão com família e amigos numa tarde de domingo numa das nossas praças é um prazer que muitas vezes não existem em outras cidades. Após uma semana cansativa em que a população gera a riqueza que sustenta a comunidade, incluindo ai os impostos que são o combustível do sistema público, nada mais prazeroso que uma tarde ensolarada em um ambiente aconchegante como se espera de uma praça bem cuidada.
Deixo por fim a sugestão para os gestores municipais de que os canteiros possam ser “adotados” pelas empresas locais, com placas nos canteiros com os nomes das empresas adotadoras. Este procedimento existe em outras cidades gaúchas e traria vantagens para todos. Ao “adotar” um canteiro a empresa se compromete a cuidar e manter ali um pequeno jardim. Com a natural disputa pelo canteiro mais bonito, isto traria beleza e orgulho para a nossa cidade. Mais flores e menos mato.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Quem paga o pato? / Folha do Sul - 10.Fevereiro.2014



Quem paga o pato?

Aprendemos na Escola Secundária que corpos com pesos diferentes caem com a mesma aceleração e assim teoricamente uma folha de papel cairia ao mesmo tempo em que uma bola de chumbo. Não podemos observar isso diretamente devido à resistência do ar que provoca toda uma variação de resultados. Coube a Galileu Galilei (1564-1642) isolar os efeitos da resistência do ar e assim conseguir provar que a aceleração da gravidade é uma constante para todos os corpos ao nível do mar (g = 9,81 m/s2).
Da mesma forma que Galileu, precisamos ao analisar os eventos sociais e políticos que ocorrem ao nosso redor, isolar efeitos paralelos que de repente ocorrem e se tornam muitas vezes mais importantes que os próprios eventos. Isto me parece ser o caso em que um médico cubano prestou ajuda a um morador de Candiota.
Antes de entrarmos no caso em si, precisamos analisar as raízes do problema. Quando se trata de saúde pública, temos o governo, os órgãos de classe (CRM, sindicatos, etc) e finalmente o povo. Muitas vezes no meio de um debate, nem sempre tão calmo como deveria ser, temos a impressão que na visão oficial o verdadeiro culpado pelos problemas do sistema de saúde é o povo brasileiro, que insiste em ficar doente de vez em quando.
Com a decisão do governo, de trazer médicos estrangeiros sem o devido rito de revalidação do diploma, rito este que tem que ser seguido por todos, inclusive pelos próprios brasileiros que estudam no exterior, seguiu-se um debate de proporções colossais sobre o que e onde estes médicos importados poderiam fazer ou deixar de fazer. A questão que não ficou esclarecida é como se daria este processo que por fim foi decidido na base do “decreto”. Fazendo as contas, noves fora, os médicos vieram para cá cercados de restrições e o processo todo de muitas dúvidas. Obviamente que no calor da contenda de ideias, o mais acertado seria focar no problema de saúde pública, mas aparentemente o debate tomou o rumo de sempre, político, onde quem menos interessa é o povo, que é claro, irá pagar a conta mais tarde. A ala do governo defendendo a importação dos médicos, a ala da oposição sendo contra.
Enfim eles chegaram, alguns foram alocados no Pampa, entre eles o médico Maikel Ramirez Valle. Pela noticia dos jornais o único alocado em Candiota. Pelas regras do programa, o Senhor Valle só poderia atender em uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Contudo ao ser confrontado com um paciente em situação crítica sem outro médico no pronto socorro local, o Sr. Valle tomou a única decisão razoável dentro de qualquer ética e ajudou a pessoa. Por causa desta ajuda, o Senhor Valle ganhou o noticiário nacional e se tornou o centro do debate político. Isto porque pelas regras do programa ele não poderia estar ajudando a pessoa fora da UBS. O Sindicato dos Médicos com isso encaminhou uma denúncia aos órgãos competentes por exercício ilegal da medicina.
Isto tudo soa a samba de doido. A defesa dos políticos é na verdade, como o próprio nome diz, política. O interesse é defender o governo. Por que não mostram eles, de forma firme e decidida, que precisamos efetivamente de mais médicos, mais escolas, mais facilidade na revalidação de diplomas, isto para todos (na verdade esta parte a verdadeira raiz do problema). O sindicato faz por sua vez uma denúncia onde a ajuda, inevitável do ponto de vista ético e religioso-cristão, se torna um crime com possibilidade de deportação!?
Para o Senhor Valle: sugiro que peça para emigrar para o Brasil, se necessário asilo político. O Senhor Valle demonstrou coragem, presença de espírito e também passou no teste. Cidadãos conscientes e do bem nunca foram demasiados em lugar nenhum, muito menos no nosso pais, terra de imigrantes. Sugiro também que revalide seu diploma no processo, enfrentando as dificuldades que todos nós enfrentamos. Também será bom ver que dos US$ 10.000 que lhe são pagos, todo dinheiro ficará com o Senhor Valle e não apenas US$ 1.000 como agora, com o resto (US$ 9.000) indo para o governo cubano. Precisamos mostrar para o Sr. Valle e os outros médicos cubanos que somos um pais que temos e respeitamos leis trabalhistas.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O Custo / Folha do Sul - 3.Fevereiro.2014



O Custo

Havia um ditado no fim da ditadura sobre obras públicas: “melhor pagar as comissões e não fazer o projeto, sai mais barato porque não vai ser feito mesmo”. Os números cercando obras do governo eram estrondosos do ponto de vista financeiro (e de desvios dos recursos). Muitas tinham sido planejadas sem que sequer existissem necessidades. Um exemplo flagrante disto é a Transamazônica. Para que construir uma estrada paralela ao rio Amazonas se o próprio rio é uma via natural de transporte? Outro exemplo gritante é a Ferrovia do Aço. Para que construir uma via férrea se existia outra paralela e que poderia ser ampliada e melhorada a um custo bem menor? Os exemplos se multiplicam, grandes ou pequenos. Particularmente ninguém fala mais na Ferrovia do Aço, projeto que virou ferro velho, bilhões de nossos impostos foram gastos ali e nunca teve nenhum uso. A máquina estatal estava em um estado tal de desmoralização que a pergunta que fica é: Por que durou tanto tempo (20 anos) aquele estado de coisas?
As pessoas que ganham postos de responsabilidade na administração pública muitas vezes passam a ter um poder de decisão enorme. Certamente o poder não muda as pessoas, apenas revela como elas realmente são. Desnecessário lembrar que os “tomadores de decisão” vem do mesmo molde social de todos nós. Numa sociedade democrática com imprensa livre, judiciário independente, um parlamento atuante e eleições periódicas, as barreiras para desvios são teoricamente maiores mas mesmo assim sempre ocorrem os escândalos de sempre. Este não é um “privilégio” brasileiro mas do mundo todo. Uma das faces mais visíveis de corrupção vem paradoxalmente da China, um pais com um sistema governamental fechado, onde corruptos pegos com a mão na botija são executados publicamente com uma bala na nuca (a família paga a bala da execução para não haver prejuízo ao erário). Digo paradoxal porque são as organizações internacionais de direitos humanos que tanto denunciam estas execuções.
Os problemas deste tipo (corrupção e mau uso do dinheiro público) no governo se multiplicam desta forma em todos os níveis e compete a sociedade procurar se defender com os instrumentos que tem a disposição. Se pretendemos ser uma sociedade moderna e progressista, nada mais importante que tentar entender como funcionam estas decisões, como podemos influencia-las e mesmo detê-las se elas se opõem aos nossos interesses. Ocupar um cargo público significa muito mais responsabilidades que privilégios e quem se propõem a isto tem que entender que a cobrança será inevitável e pensar duas vezes antes de fazer (ou deixar de fazer) algo que irá afetar a vida das pessoas que lhe confiaram este mesmo poder muitas vezes eletivamente.
Temos assim uma situação que poderíamos classificar como permanente em que a tentação de ganhos fáceis em posições públicas está sempre a espreita dos detentores do poder. Mas assim como existe esta tentação, existem os mecanismos para que aqueles que se proponham a tal saibam que existem consequências. A responsabilidade da sociedade civil é assim enorme para que tenhamos certeza de que recursos públicos, oriundos do suado trabalho do povo através de impostos, sejam gastos devidamente e não em festas temperadas com estes mesmos recursos.
Muito pior que a atitude daqueles que assim se revelam abutres do patrimônio coletivo para obtenção de privilégios e ganhos pessoais, muito pior, muito pior mesmo... é o silêncio dos bons, que ao se calarem aceitam o que lhes é imposto, alias não somente a eles mas também aos demais membros da coletividade.
Escrevo esta coluna em homenagem aos colegas Muza e Leo que demonstram uma coragem que espero poder um dia estar a altura. A voz deles, por mais que incomode aqueles que se acham acima do bem e do mal, é para nós a luz de um farol a nos balizar no meio de um oceano muitas vezes escuro e atormentado.