domingo, 3 de março de 2013

Carvão na Encruzilhada - O Globo - 31 Julho 2012

Carvão na encruzilhada

Poucas imagens são tão vinculadas ao trabalho degradante quanto a de homens, com rostos cobertos de fuligem negra, saindo de uma mina de carvão mineral. Poucos episódios simbolizam tão bem a poluição do ar quanto o grande nevoeiro letal, resultante de uma mistura de névoa natural com fumaça negra, que encobriu a cidade de Londres, em 1952. O fenômeno, que matou 12 mil londrinos, especialmente crianças e idosos, ficou conhecido como Big Smoke. Desde então, a fama de feio, sujo e malvado não se desgrudou mais do carvão - o combustível fóssil que mudou a face do mundo propiciando a Revolução Industrial.

Dois séculos se passaram e ainda hoje o carvão é a principal fonte geradora de energia elétrica do mundo. Países como Estados Unidos, Japão, China, Índia, África do Sul e Rússia são tão dependentes do carvão no século XXI, quanto era a Inglaterra, no século XIX. O Brasil é uma rara exceção. Aqui, o carvão tem um peso irrisório na matriz energética, apenas 1,5%. No mundo, ele responde por 41%. Motivo de tamanho poder? Preço baixo, oferta abundante e estoques longevos. As reservas de carvão somam hoje 860 bilhões de toneladas e são suficientes para 130 anos - pouco mais que o dobro da vida útil prevista para o petróleo, que pode se exaurir em cerca de seis décadas.
Essas características transformaram o carvão numa fonte de energia atraente do ponto de vista econômico, mesmo respondendo por 30% a 35% das emissões globais de gás carbônico (CO2), um dos principais responsáveis pela intensificação do efeito estufa. Seu uso é imenso e ascendente. A China queima 3 bilhões de toneladas de carvão por ano. A Alemanha, alarmada com o acidente nuclear de Fukushima, no Japão, em 2011, está construindo 11 usinas de carvão. E até o Brasil, que há 27 anos não fazia prospecção, entrou na corrida.
O estoque nacional de 7 bilhões de toneladas não passa de 1% das jazidas totais do planeta. Se consideradas as áreas não trabalhadas, ele pode superar em três vezes e meia as reservas de petróleo no Brasil. Não é à toa que o governo incluiu a indústria do carvão no programa Brasil Maior.
- Todos os países estão investindo em fontes amigáveis, mas nenhum deles banca o escoteiro. O Brasil vai esquecer essa energia debaixo da terra? - questiona Maria Luiza Sperb Indrusiak, coordenadora do Núcleo de Estudos Térmicos e Energéticos da Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul.
O Serviço Geológico do Brasil já identificou indícios do mineral nas bacias do Parnaíba (no Maranhão e no Piauí) e do Solimões (no Amazonas), assim como no balneário do Rincão, em Santa Catarina. Só que o carvão está numa encruzilhada e o desafio é adotar tecnologias que permitam a produção de um carvão mais limpo. Mesmo usando pouco, o passivo ambiental deixado pelo carvão no país é alto. Em Santa Catarina, águas de rios e subterrâneas foram contaminadas até a década de 80, quando surgiram as primeiras restrições ambientais.
- Não precisamos cometer os mesmos erros do passado, os erros da ignorância - justifica o engenheiro Francisco Porto, gestor de Meio Ambiente da Companhia de Geração Térmica de Energia Elétrica (CGTEE), do sistema Eletrobras, que opera a usina Presidente Médici, no município de Candiota, no Rio Grande do Sul.
Mina a céu aberto
É justamente nos pampas gaúchos, onde o carvão aflora do chão, a menos de dois metros da superfície, que se encontra a maior mina a céu aberto do país. O município de Candiota produz 38% da produção nacional de carvão. A economia da cidade é baseada nessa indústria: 80% das suas receitas saem das minas. A mais nova revolução foi a construção da termoelétrica Candiota 3, inaugurada em janeiro de 2011. O investimento, uma das obras grandiosas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), correspondeu à soma do PIB municipal de Candiota de 1997 a 2005.
Na sede do sindicato dos trabalhadores, os diretores defendem o emprego e o carvão. Admitem que nunca foi feito um estudo sobre a saúde dos trabalhadores. A bióloga Paula Rohr, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em sua tese de doutorado, trouxe à luz uma preocupação. Foram coletados sangue e mucosa oral de 57 trabalhadores expostos ao carvão e de 71 não expostos. O resultado foi mais lesões do que o esperado e alterações cromossômicas nos que foram expostos ao carvão. O próprio organismo é capaz de promover reparos, mas cada indivíduo é único e, em alguns casos, isso pode não acontecer e dar origem a um câncer.
- O carvão é, por si só, danoso. Além do pó, na queima são geradas outras substâncias. Dezesseis delas são consideradas prioritárias em estudos do surgimento de câncer - afirma Juliana da Silva, especialista em Genética e Toxicologia Aplicada.
Os trabalhadores nas minas a céu aberto, como a de Candiota, têm direito a aposentadoria especial, com 25 anos de trabalho. Nas minas subterrâneas, são 15 anos. Edson Budó, diretor do Sindicato dos Mineiros, diz que dificilmente os trabalhadores conseguem obter o benefício:
- Temos de ir à Justiça sempre. Uns conseguem, outros não.
Um dos piores lugares para se trabalhar na mina é a região na qual o carvão começa a ser quebrado para ser transportado por esteira. Geralmente um buraco fundo, escuro e repleto de cinza, também chamado de toca da onça", na chegada na usina. Quando chove, a cinza vira lama. Protegidos por máscaras, cerca de 70 operários se revezam em três turnos na limpeza. Décadas atrás, era normal fazer o serviço sem qualquer proteção.
- É o começo do inferno - descreve Alexandre Trindade Silveira, 47 anos, único mineiro a ter identificada a pneumoconiose, doença provocada pela poeira do carvão. A mancha no pulmão foi descoberta nos exames anuais feitos pela mineradora CRM em todos os que trabalham diretamente com o carvão. Alexandre foi transferido para o viveiro de plantas, onde germinam sementes e mudas que irão recompor a vegetação das áreas mineradas.
- Desenvolvimento sustentável não é não fazer nada. É fazer com responsabilidade - afirma Paulo Monteiro, do grupo EBX, de Eike Batista, que tem prontas termoelétricas no Ceará e no Maranhão, onde vai utilizar carvão da Colômbia, no Porto do Açu, no Rio Janeiro; e licenças para usinas no Rio Grande do Sul, onde comprou a Seival.
Hoje, 26 projetos de sequestro e uso de gás carbônico estão em curso no mundo. Os prazos de maturação deles geralmente variam de cinco a 15 anos. Países investem na captura do gás carbônico para injetá-lo em galerias subterrâneas de mineração ou em poços de petróleo desativados.
- O uso dos combustíveis fósseis no mundo continuará crescendo. A solução é investir em tecnologia para tornar as usinas mais eficientes, usando menos carvão - comenta Fernando Zancan, presidente da Associação Brasileira do Carvão Mineral (ABCM).
No Rio Grande do Sul, tanques verticais de microalgas serão testados nas termoelétricas. O projeto é do professor de engenharia bioquímica Jorge Alberto Costa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele espera reproduzir na usina o que ocorre na natureza, onde a fotossíntese nas águas gera 70% do oxigênio do planeta.
- Em cinco anos, poderemos reduzir pela metade a emissões de CO2. A ideia é ter um carvão limpo - promete Costa.
TERRA ESTÉRIL
" ... Se as sólidas veias de carvão proporcionam vidas às cidades, as veias líquidas da terra, os rios, perderam por completo a vida; as mesmas cristalinas águas, que levam a moinha para os fornos de coque, logo a seguir, poluídas, contaminam as vargens, esterilizam as sementes, silenciam as atafonas, os moinhos e as fecularias; se as gigantescas escavadeiras revolvem o solo, para racionalizar a céu aberto a extração do minério com o mínimo de esforço e o máximo de rendimento, transformam de outro lado o paraíso verde num inferno de crateras entregues à erosão..." A visão crítica do padre Agenor Neves Marques transcrita no livro "Memória e Cultura do Carvão em Santa Catarina", organizado por Alcides Goularti Filho, detalha bem o que foi, no passado, a exploração do minério no Brasil.
Ainda hoje, as regiões carboníferas pagam preço alto pelo desdém com a natureza. Em 1990, cerca de 6 mil hectares no Sul de Santa Catarina foram consideradas área crítica nacional. As terras, antes férteis, receberam cerca de 200 milhões de toneladas de rejeitos. Estima-se que dois terços da bacia hidrográfica da região tenham sido atingidos por poluentes. Estudo da Fundação SOS Mata Atlântica mostra que o Rio Criciúma continua ainda hoje como o mais poluído do país. Graças a uma ação do Ministério Público Federal (MPF), a Justiça obrigou as empresas a recuperar 1.650 hectares no estado.
No Rio Grande do Sul, a chuva ácida causada pela mineração chegou a motivar protestos de agricultores do Uruguai. Com o uso de filtros, as reclamações cessaram, mas a procuradora Paula Schirmer, do Ministério Público Federal em Bagé, afirma que resta um grande vácuo no controle e monitoramento das emissões na região de Candiota. Na usina de Candiota, a Dragline, máquina gigante, de 1.620 toneladas e 40 metros de altura, retira do solo 800 metros cúbicos por hora de material estéril para revelar, por baixo dele, o carvão. A diferença em relação ao passado é que a Companhia Riograndense de Mineração (CRM) implantou um grande programa de recuperação das áreas degradadas, para repor a camada fértil do solo e, ao mesmo tempo, isolar a pirita, para que ela não atinja as águas, tornando-as ácidas.
MOBILIDADE ENERGÉTICA
Polo carboquímico pode gerar negócios de até US$ 3 bilhões
Tudo o que se produz com petróleo, se faz com carvão. Até plástico. É com essa ideia que um professor nascido no Rio de Janeiro, que já viveu nos Estados Unidos e em Israel, pode mudar o rumo das discussões sobre o mineral no Brasil. Há menos de dois anos morando em Bagé, onde leciona na Universidade Federal do Pampa, Sérgio Meth é um eloquente defensor do desenvolvimento do setor carboquímico no país, colocando em segundo plano a discussão do uso do carvão para energia elétrica.
- Usar o carvão de Candiota para produzir energia é um desperdício. Com pelo menos 52% de cinzas e 20% de água, ele é ideal para a carboquímica. Pode ser transformado em metanol, insumo do qual o Brasil é grande importador. Podemos fazer produtos com muito mais valor agregado e menor emissão de gás carbônico. A redução seria de um terço - diz o especialista.
Para ele, um polo carboquímico em Candiota causaria, no Rio Grande do Sul, o mesmo impacto que o Polo Petroquímico de Camaçari teve, no passado, na Bahia. O primeiro passo seria transformar o carvão em gás de síntese, dando origem ao metanol. A partir daí, é possível listar uma série de derivados, de amônia a polipropileno, de resinas a ureia. O enxofre, assinala, deve ser direcionado à indústria de fertilizantes.
- O carvão pode gerar uma cadeia de negócios entre US$ 2 bilhões e U$ 3 bilhões - acrescenta Meth.
Ele afirma que produzir energia elétrica a carvão na região do Pampa não é inviável, mas a competição será dura com a energia eólica. Afinal, o vento minuano, de origem polar, atinge justamente os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, estados da região carbonífera.
Meth foi ouvido em Brasília pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, que coordena o Roadmap Tecnológico para Produção Limpa e Eficiente e Uso Limpo e Eficiente do Carvão Mineral Nacional - de 2022 e 2035, encomendado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). O estudo está sendo finalizado. Para o engenheiro Elyas Medeiros, coordenador do Roadmap, o desenvolvimento da indústria carboquímica viabilizará a extração do mineral no Brasil.
- A pior coisa que o Brasil pode fazer é queimar o carvão. Ele tem subprodutos essenciais para uso tecnologias modernas - afirma Medeiros. Segundo o engenheiro, um dos produtos inovadores que podem ser feitos pela indústria carboquímica é o semicondutor orgânico. Trata-se de um plástico que conduz eletricidade e pode cobrir um prédio inteiro. Para o futuro, o semicondutor significa nada menos do que garantia de mobilidade energética.

Cleide Carvalho 
 
Fonte: O Globo - Julho 2012 - página central

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